Ele andava pela rua sem prestar muita atenção na vida quando ouviu:
Severino! Eu pensei que você estava morto rapaz!
Eu hein? Morto, eu?
Você! A Noquinha me disse até que tinha ido no seu enterro! E tem mais: o pessoal lá do bar fez até uma vaquinha pra dar um dinheirinho pra sua mulher - ô cara como é que pode isso?
Bem, você tá me vendo e eu também tô te vendo, daí tô vivo, né? Ou não?
E o amigo seguiu andando e balançando a cabeça. Ver um morto não é lá dessas coisas agradáveis, ainda mais quando o morto diz que não está morto - que coisa!
E o Severino ficou com a pulga atrás da orelha.
Chegou no escritório e a coisa continuou:
Ó Severino, quem é morto sempre aparece! Gritou um engraçadinho com um sorriso amarelo. O chefe da seção levou para outra sala duas secretárias que teimavam em dizer que o pobre Severino era uma alma do outro mundo, e falavam alto, meio histéricas, deixando o clima tenso. Um boy até tentou acender uma vela. Que coisa, o coitado do Severino já não aguentava mais; pediu pro gerente pra ir embora mais cedo e teve que ouvir a gozação: ir mais cedo, você já foi!
Matutando durante a volta para casa, Severino começou a colocar algumas fichas em ordem dentro da cabeça:
Não tinha se visto no espelho pela manhã ao se barbear - achou que o danado tinha se quebrado e ninguém o avisara. O café estava sem gosto - mas sem gosto algum -parecia que estava bebendo ar. Não vira sua mulher em lugar algum da casa. E mais um monte de outros pequenos acontecimentos que ele não dera importância e que agora voltavam como um filme.
Morto, eu? Como pode ser - morto e falando, conversando, sentindo o calor do sol, pegando ônibus? Morto eu?
E puxou a cordinha quando chegou perto do seu ponto. E o motorista continuou e continuou e continuou enquanto Severino seguia puxando a cigarra fazendo o maior barulho. E ele gritava, você não está me ouvindo - pára essa joça, pára, eu quero descer! Pombas!
Finalmente o bicho parou e ele desceu blasfemando contra o calor, o motorista, o ônibus, a vida e a morte.
Entrou em casa. Ninguém. Nada, casa vazia. A sala estava escura e a luz teimava em não acender. Severino sorriu, vai ver tô mesmo morto e ainda não sei, falou alto pra ver se sua voz tinha eco. Tinha!
Entrando no seu quarto reparou que a cama estava arrumada, ué? Ele saíra e não se lembrava de ter arrumado a danada! Na mesinha de cabeceira um livro aberto ao lado de um pacote de lenços de papel indicava que alguém tinha chorado. Severino ficou sério, sentou na cama, olhou o livro e leu ao acaso:
“A ventania misteriosa passou pela árvore cor de rosa”
Que coisa besta, árvore cor de rosa, ventania, parece coisa de boiola.
E ao ouvir sua própria voz ecoando pelas paredes, reparou que partes de suas pernas começavam a ficar transparentes e um cheiro de terra molhada entrava de carona numa lufada de vento.
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