Mariz Conzê
No início era o Verbo,
Veio o Sujeito
E o Predicado
E fêz-se a frase
Veio o Editor
E mudou tudo!
No início era o Verbo,
Veio o Sujeito
E o Predicado
E fêz-se a frase
Veio o Editor
E mudou tudo!
Ela entrou correndo fugindo da chuva.
Puxava pela mão um menino encharcado.
Não parecia que iria haver uma venda, mas...
Pois não!
Ar-condicionados - preciso de uns 3 ou 4!
Ah sim, ares-condicionados, claro.
Foi o que falei, quero bons preços e ótimas condições!
Todos iguais?
Claro!
Ah sim, então é bom preço e ótimas condições!
Foi o que eu disse!!! O sr. Vai me mostrar ou vai ficar aí repetindo tudo o
que falo, hein? Falou e virando-se para a criança soltou o verbo:
E você não faça bagunça, fique quieto e não mexa nos guardas-chuvas!
Guarda-chuvas! Gritou o vendedor lá do outro lado da loja.
A mulher rodou a loja inteira, colocou defeito em tudo, falou mal das
marcas, contou experiências ruins de suas amigas e reclamou dos preços,
enquanto o vendedor sorria a demonstrava os produtos.
Pouquinha quantidade né? Desdenhou.
Como? Já lhe mostrei uma dúzia de marcas diferentes! Saiba a senhora que
ares-condicionados é no Paraíso dos Móveis!
São!
É!
É!, É!, E esse slogan é usado há mais de 30 anos! Desculpe-me o anglicismo.
São! e não me interessa nem um pouco a sua religião, anglicismo,
protestantismo, catolicismo. Quero os ar-condicionados e pronto!
Ares! Ares! E não vendo mais nada!
Quero falar com o dono! Gritou furiosa a mulher.
O dono sou eu! E não vendo, tenho dito! Não vendo e pronto!
Mal educado, estúpido, imbecil, podem ir o senhor e a sua loja pras putas
que os pariram! A mulher falou e deu uma rodada. Puxou o filho e foi saindo.
Já na porta se voltou e ouviu o homem falar:
Muito interessante este plural, muito, volte aqui senhora, volte que eu vou
lhe fazer um ótimo desconto!
iAfter
ou A revolução na comunicação intermundos
Se há alguém que pode revolucionar esta comunicação, este alguém é Steve Jobs
Zé Zuca
Não conheço ninguém que tenha se comunicado de forma moderna e eficiente depois de partir para outra dimensão. Todas as possibilidades estão no campo da religião e não são aceitas como fato comprovável. No caso mais conhecido de comunicação do outro lado para cá, ou daqui para lá, é necessário utilizar o corpo de outro. Embora eu acredite, convenhamos, é uma manifestação algo deselegante e meio assustadora.
Mas esta incomunicabilidade pode estar prestes a acabar. Se há alguém que pode revolucionar o paradigma desta comunicação este alguém é (ou era) Steve Jobs. Já pensou? O mundo tem quatrilhões de anos e, em todo esse tempo, não surgiu qualquer ferramenta que permita a comunicação com nossos queridos que passaram para o outro lado ou deles com a gente. Já pensou se o Steve criar uma?
Poderia ser uma espécie de communicator device after death. Claro que ele sintetizaria, chamando, possivelmente, de iAfter. Um aparelho sofisticado, fino, bonito e amigável que permitiria o contato entre os daqui e os que foram para além da morte e vice-versa. Venderia muito mais do que a Aplle vendeu os iPhone, iPod e iPad juntos. É incalculável o número de pessoas que vivem lá e aqui (só aqui, 7 bilhões) que se beneficiariam deste tipo de comunicação. Imagina só: Você está ansiosa em sua casa, sentindo uma falta danada daquele seu melhor amigo que se foi. De repente o aparelhinho toca, enchendo o ar de esperança e alegria. É ele. O papo rola descontraído com uma qualidade de som impressionante, como se o amigo ou amiga estivesse aqui no Rio de Janeiro. De certa forma estaria mesmo. Com uma super webcam lá e cá você poderia ver se seu amigo estaria mais gordo ou mais magro, se entre nuvens, num quarto ou num paraíso.
Jobs, naturalmente, vai necessitar de um tempo para estudar a situação, montar uma equipe multidisciplinar muito criativa e entender as reais necessidades das duas clientelas. Vai precisar também conhecer as disponibilidades do além. De que material seria o iAfter? Que facilidades ofereceria aos comunicadores multidimensionais? Bastaria um toque num ícone ou seria necessário acessar uma espécie de Internet celestial? Vai que ele crie um teletransportador e traga a pessoa ou o espírito ao vivo ou leve alguém por algumas horas pra bater um papinho no além?
Calma aí. Por outro lado, não falta quem aposte que Steve Jobs estaria se surpreendendo por lá, embasbacado com o que encontrou: nenhuma necessidade de maquininhas para se contatar. Comunicação telepática, mente a mente, em alta velocidade, memória ilimitada. E mais, teletransporte de um lugar para o outro, usando apenas a vontade. Viagens rapidíssimas para qualquer lugar, encontrando, em segundos, quem o pensamento quiser. Jobs estaria constatando que, por lá, todos os aparelhinhos que ele inventou aqui na Terra são desnecessários. É só pensar e chegar.
Espera aí. Mesmo que no outro mundo a comunicação seja moderníssima, nunca ninguém veio pessoalmente aqui depois de partir, assim como ninguém foi lá, bateu um papinho e voltou. É aí que entra o velho Steve. Depois de um tempo de perplexidade, com sua capacidade criativa perceberá que ainda há espaço para suas invenções. E vai agir rápido. Não vai esperar que uma fatalidade possibilite a concorrência de um Bill Gates. Afinal ele chegou primeiro. Vai querer, certamente, criar algum mega dispositivo para o progresso das comunicações intermundos. Por que não o iAfter? É só uma questão de tempo.
O desafio está lançado. Façam suas apostas. Os universos nunca tiveram uma chance como esta de terem uma revolução nos contatos interdimensionais. É só esperar para receber, em breve, a comunicação do primeiro grande lançamento. Certamente, em cadeia planetária de TV, invadindo todos os computadores, em uma aparição quadridimensional espetacular entre nuvens no céu: calça jeans, camisa preta de gola rolê, ele, com algo muito desconhecido nas mãos, o próprio Steve Jobs.
Tenho cara de bobo,
Tenho até mesmo jeito de bobo
Minhas ações são tolas e infantis,
Mas,
Também sou um Calunga de Oxum
Um Calunga homem macho
Com cabeça de Santa mulher fêmea
Que roda e briga
Que encara e vence
Que fala sério e encanta
Eu entro onde nem homem nem
Mulher entra
Eu faço o que nem o Arco-Íris faz
Eu sou o Calunga
Que no Padê, chama
Dá comida e oferendas
Ao pai Elegbá
Mas,
Também sou o cara engraçado
O pai feliz e amado
O marido fiel
O amigo de meus amigos
Um quentão é 5 e dois é 3!
Um é cinco e dois é três? José se espantou. Como pode dois ser mais barato
que um? Sorriu, coisas do Rio, coisa de Carioca, esse povo engraçado que
recebe os nordestinos como se tivessem nascido aqui.
Dois é três! Ora vejam só!
José se encostou na barraquinha, pediu dois quentões e, respirando o ar de
pólvora e madeira queimada deu uma olhada pela quermesse.
Ô saudade lá da Paraíba!, da sua terra, da sua gente, do São João, das
festas que faziam sua cidade entrar no mapa. E tome quadrilha.
A sanfona tocava, os rojões subiam e o quentão também! Olhe ali! A Dona do
403! E toda produzida! Que engraçado ver o pessoal do seu prédio numa
situação fora dele. E a música rolava. Essa eu conheço! E veio pra cabeça a
tarde de conversa com o Síndico do prédio - ele se apresentando: José
Severino do Grupo.
- Do Grupo? Perguntou o Sindico.
- Sim sinhôr, é José purcausdiquê nasci cumbigo enrolado no pescoço
e fui consagrado pra São José, Severino purcausqui todo mundo lá pras bandas
de lá é, e do Grupo prucaus di minha mãe que era professora lá no Grupo
Escolar e pra diferênçá fiquei do Grupo. Sabiam não o nome do meu Pai,
fiquei do Grupo. Eu sei lê e escrevê, tenho as referênça que o sinhôr
precisá.
Vinte anos! Como o tempo passou rápido, parecia outro dia, parecia que a sua
infância ainda estava ali do lado.
O cheiro do gengibre subia da panela de quentão, José sorriu e pediu mais
dois. Três real, que gozado! As fagulhas da madeira queimada também subiam e
com um estalido se perdiam de encontro ao céu negro. As imagens das suas
festas estavam vivas, o cheiro, a música, o calor, era como se ele estivesse
na sua cidade. Que saudade, quanto tempo. Como andaria sua mãe? E os irmãos,
estariam ali pelo Rio? A falta de notícias e a total ausência de informação
tinham fechado seu coração.
Vinte anos! A menina que ele tinha desgraçado já devia ser avó! Claro, o
filho de vinte anos atrás tinha idade para ter um filho - filho do filho que
nunca viu. Avô. Qual o quê!
Vinte anos fugindo da responsabilidade com a menina. Vinte anos de Rio de
Janeiro, uma nova vida, que, se não preenchia a saudade dos seus, tinha lá
suas compensações.
E tome quadrilha!
E tome quentão!
O casamento começou. Risos, foguetes, o Padre casando e a noiva de tênis
fugindo, a música alta e mais um morador do prédio lá longe.
Um amigo passou do lado e ele ofereceu um quentão.
Um cigarrinho, as fagulhas, a folha do galho de bambu entrando no olho, uma
saudade enorme tentando sair.
Sacudiu a cabeça, tinha que tomar uma decisão, tinha que voltar, tinha que
ver sua mãe, tinha...
Ô saudade.
Na barraca do lado um sujeito acendeu umas brasas e colocou queijo de coalho
pra queimar. Noutra barraca tinha pamonha, noutra além carne de sol.
É... parecia que a Paraíba era ali.
O amigo falava e ele não ouvia, o quentão esfriava e a cabeça voava pra
cidadezinha, pra sua casa, pra sua gente.
Um toque no ombro deu um susto. Mais um morador do prédio brincava com ele.
É, essa cidade já era a sua cidade, pra quê voltar, pra quê?
A moça passou em frente da barraca. Já tinham trocado olhares antes. Ele
chamava a moça de menina do pão, todos os dias ela ia para a padaria e se
olhavam. Um quê de desejo se acendeu.
Quentão? Vem. Um é 5 e 2 é 3!
Ela aceitou sorrindo.
O balão vai subindo, vai caindo a garoa, o céu é tão lindo e a noite é tão
boa.
Será que dessa vez eu saio desse casulo de aranha? Vou conseguir uma moça
direita, uma moça pra casar direito, pra ter filhos direito, pra fazer a
minha família, é isso?, é agora que eu saio dessa toca?
Começaram a conversar, a beber, as barreiras foram caindo e a conversa foi
ficando em voz baixa. A música lá no fundo e o quentão lá na frente.
Ó, agora a quadrilha é pra todos, vamos dançar? Falou a morena.
A cabeça girava, o corpo girava e a morena girava. A fumaça subia, os
cheiros entravam, o calor da pele dela aquecia seu coração. Quanta
felicidade, era quase como se fosse lá na cidade. A música acabou e a morena
puxou o braço dando risadas - vamos tomar mais dois quentão? É só três,
falou sorrindo.
Zé Severino? A voz perguntou.
José Severino, seu criado, respondeu.
Do Grupo?
José Severino do Grupo sim sinhôr, porque?
A resposta veio como um novo cinto, dois dedos abaixo do cinto de couro que
segurava a calça de Pervinc Aurora. O novo cinto abriu a calça como um
sorriso e por ele seus miúdos começaram a sair pra fora.
A morena gritou e saiu correndo; uma clareira se abriu no meio da dança.
Suas mãos tentavam agarrar seus intestinos como se fosse um filho nascendo.
A cabeça girou, as pernas bambearam e ele caiu sentado.
Olhou para cima. O velho, pequeno, pele curtida, roupa mal assentada, de
cabeça branca e com uma peixeira na mão, falava. Falava e gritava. O quê ele
falava? Filha? Vinte anos?
Um traque explodiu e o cheiro de cordite encheu o ar.
Ele sacudiu a cabeça como se estivesse com o cabelo molhado tentando prestar
atenção no que estava acontecendo. Um rojão papocou. O velho seguia falando,
seus miúdos escorriam pelo meio das mãos, o sangue descia e corria separado
do quentão que bebera. As pernas abertas com aquilo cheio de voltas e nós
espalhado no meio, parecia coisa de filme americano. O sangue ia para um
lado e, enquanto a escuridão tomava conta da sua vista, o quentão escorria
para outro, parecendo querer voltar pra dentro da panela. Olhou para os
sapatos e os cadarços estavam soltos. Ué? Não tinha amarrado?
O velho seguia gritando; ao fundo as fagulhas, os cheiros, a música.
São João, São João, acende a fogueira do meu coração.
Ele estava voltando para casa.
Vou matá-lo.
Sei como.
Já planejei tudo.
Todas as ações, passo a passo; até mesmo o que vou dizer e como vou me
comportar depois.
Vou matá-lo.
Matar é a única coisa em meu pensamento.
Tá bom, parece piada, mas não é! É muito sério, é papo de morte! Tenho uma
vida pacata, sossegada, amigos até dizem que sou uma pessoa zen. Mas um
monstro mora dentro de mim!
Eu descobri.
E assustado com o bicho, me peguei cutucando o danado só pra tentar ver o
tamanho da sua força.
Ele quase acordou.
Eu me senti um gigante - cabelos na língua, farpas na palma da mão, sangue
gelado.
Brincadeira?
Não é!
Estou escrevendo isso como um aviso e ao mesmo tempo tentando superar meus
medos. Esse monstro vai matar! Eu vou matar!
Com hora e local determinados, com o plano obsessivamente passado e
repassado, cada movimento exaustivamente repetido, cada palavra de despiste
decorada e novamente falada e falada e falada, até soar como verdade. Não
essas verdades cheias de detalhes, que não sou bobo! Preparei até mesmo o
timing de um soluço, de uma tirada de óculos, vai ser verdadeiro! Tem que
ser!
Todos os ângulos foram estudados. Como já disse, exaustivamente estudados e
pensados e interpretados e questionados e finalmente aprovados!
No início a coisa toda parecia apenas um pesadelo, um sonho ruim. Aos poucos
os detalhes exatos demais para serem sonhos foram surgindo. O desejo, a
volúpia, a excitação do antes crescia a cada noite, aí passei a pensar nisso
durante o dia também, e a fazer anotações e medições e marcações de tempo,
de passos, de atos, de palavras, de desculpas, de álibis, de tudo enfim,
tudo, tudo, tudo.
Agora é esperar a hora.
Bem, isso visto assim de longe, nessa calma, parece uma coisa e é outra - é
muito difícil esperar. Esperar para matar. Mas sei que estou fazendo o
certo, o necessário, o que qualquer um faria em meu lugar! Certo!
Por isso vou matá-lo!
Matá-lo, sem pretensões a finalmente executar o crime perfeito, mas sabendo
que vou sair ileso, sem culpa, inocente, cordeirinho!
Estes escritos serão deletados, queimados, apagados, nada, nenhuma anotação,
arma, plano, nada, nada vai sobrar para servir de elemento de ligação entre
o crime e a minha pessoa.
Nada!
O tempo corre, meus dedos batucam nas teclas enquanto suo um pouco na testa.
Sinto o monstro acordando.
Sim, estou sentindo o bicho se movimentando, se mexendo, se levantando; a
hora está chegando! Já é tempo de me preparar, parar com essa baboseira
sentimental de "botar pra fora", de fazer como os assassinos de cinema que
contam tudo antes de matar.
Chega!
Esta é a hora!
Este é o tempo final!
Vou me levantar desta cadeira, apagar tudo, desligar este computador, limpar
as impressões digitais e começar meu plano.
Vou matá-lo!
Matá-lo de uma vez, para poder viver tranquilo, sossegado e feliz, sem esse
imbecil, piegas, sentimental, romântico e babaca lado poético!